
Por dentro do ‘Love & Hyperbole’ de Alessia Cara
Três anos, três países, aprender novamente a amar música e se reencontrar artisticamente. Essa foi a base da jornada que levou Alessia Cara a criar o seu quarto álbum, Love & Hyperbole.
A cantora, que iniciou sua carreira cantando sobre as quatro paredes rosa de seu quarto, ainda canta sobre encarar o teto, mas revela se importar menos dessa vez. A simplicidade de Four Pink Walls parece crescer em Go Outside!, não são mais partículas que caem, mas um céu inteiro.
Love & Hyperbole tem um início dramático liricamente, já nos apresentando a hipérbole logo de cara. A tensão se dissipa ao longo da tracklist, revelando uma visão mais consolidada da vida adulta. Assim como Know-It-All e The Pains of Growing exploravam a adolescência e a transição para a maturidade, In The Meantime ainda refletia um período de incertezas, tentando decifrar a vida adulta. Neste novo projeto Alessia parece enxergar seu futuro com mais clareza e maturidade.
“Transforme sua dor até que ela inevitavelmente o transforme, para melhor.” diz ela sobre o tema central.

O novo projeto de Cara revela que ela finalmente não teve medo ao explorar todas as suas influências musicais. As faixas embora soem diferentes umas das outras, formam um conjunto coeso. Repleto de metáforas e paralelos, seu quarto disco equilibra nostalgia e contemporaneidade, soando ao mesmo tempo inovador e atemporal — reflexo das inspirações em Stevie Nicks, Joni Mitchell e Van Morrison, incorporadas sem perder a sua essência.
A abertura surpreende com um groove envolvente e um verso repetitivo. No trecho “Taking chances, but I’m only throwin’ rimshots”, para os ouvidos dos músicos, é possível perceber o duplo sentido: além da metáfora, rimshots também se refere à técnica de percussão que consiste em bater na “trave” do tambor. A letra expressa a dificuldade de se abrir para o mundo exterior, contrastando com o desejo de conexão e a consciência de que isso faz bem ao bem-estar — similar à expressão em inglês “touch grass”, que incentiva sair e interagir com o mundo real.
Em Left Alone, segunda faixa, ao dizer que tem um espaço onde o cérebro da outra pessoa deveria estar é possível ouvir um espaço entre os instrumentais enquanto Alessia segue cantando. A pausa proposital convida, nós ouvintes, a prestarmos atenção nos detalhes da produção.


Dead Man, primeiro single, se destaca por sua singularidade. Destoa, mas carrega consigo o ar sofisticado e refinado característicos do disco. Roy Agee, antigo membro da banda do Prince, assina o marcante solo de trombone que nos transporta direto à sensação de estar em um filme de vigaristas. Escrita retrospectivamente, Alessia revive uma situação familiar, percebendo que, mais uma vez, idealizou alguém que não era quem pensava. Porém, agora, a frustração supera a decepção, pois sabe que não há conserto. Com ironia, agradece sua criatividade por lidar com isso de outra forma. Ao cantar que “a fé não é suficiente para flutuar em uma onda ruim” ela afirma que não adianta acreditar no bem da relação, quando a mesma já está fadada a afundar.
O clipe é um espetáculo visual. O espelho bidirecional simboliza encarar a solidão de um relacionamento insustentável e matar a ideia fabricada dessa pessoa. A poça com as cadeiras representa essa solidão, enquanto outras vinhetas retratam a visão de que, no final, o conflito contínuo com essa outra pessoa acaba se tornando um conflito consigo mesmo e com seus próprios sentimentos.
Subside é um dos pontos mais honestos do álbum. Esse é um sentimento que muitos já tivemos, mas talvez nunca pensamos nele e processamos como Cara o coloca em palavras: o luto por algo que ainda está ao vivo. A vida passa rápido, mas a angústia se intensifica ao perceber que essas coisas vão acabar em breve. Alessia revisita sua infância, relembrando joelhos ralados e a divisão de uma tangerina — um costume com seu irmão e seus pais, também visto no short film.
A faixa remete à Best Days, do projeto anterior, mas sem o correr de olhos fechados. Desta vez, a sensação é de que a pílula do meio tempo não é mais tão difícil de engolir, embora a reflexão permaneça. Aqui a nostalgia sobressai a tristeza e traz a beleza da canção.
Parece que Alessia Cara se encontrou musicalmente, abraçando um estilo que sempre pertenceu à sua bela voz. O rock dos anos 80, neo-soul dos anos 90 e o R&B dos anos 2000 se fundem ao seu pop moderno, revelando sua versatilidade musical. A produção também se destaca pelo uso de instrumentos ao vivo, proporcionando um toque consistente e orgânico às faixas.
Enquanto Run Run trabalha o tema de auto sabotagem pedindo que o parceiro corra dela, Drive é uma procura desesperada pela fuga da prisão emocional criada por nós mesmos. A urgência de fazer algo que você nunca faria, apenas pela adrenalina.
Times just pocket change that I’m wasting away / Grieving what’s still alive / And fighting with an ache that won’t subside
O tempo é só um trocado que estou desperdiçando / De luto pelo que ainda está vivo / E lutando contra uma dor que não passa
vs.
And honest, I’m trying to rid myself of grief / Before it comes to catch you / I think it’s better that you rid yourself of me
E, sendo sincera, estou tentando me livrar do luto / Antes que te alcance / Acho que é melhor você se livrar de mim
Get To You chega com um inesperado rock alternativo e um baixo marcante, composto e tocado pela própria Alessia. As metáforas paralelas retornam com força, usando as palavras “mesa” e “águas” para contrapor a ideia de uma pessoa estar perto e distante, respectivamente. É uma percepção um pouco mais triste da mesma realidade de Dead Man.
(Isn’t It) Obvious, uma das suas melhores obras, é onde começa o tema central do álbum. O solo melódico de John Mayer foi a adição perfeita, elevando a profundidade sonora. O fade-out da guitarra, em vez de um final abrupto, traz uma sensação de continuidade infinita — como o amor óbvio descrito.
O gancho para o amor vem em Garden Interlude. Fico feliz de saber que não é apenas uma interlude que transita uma parte à outra em poucos segundos, mas sim uma música completa que liga as duas partes. A atmosfera de uma demo é um efeito natural dos vários experimentos sem um ritmo específico.
Se você não esperava um cheirinho de álcool em gel em um álbum de 2025, Nighttime Thing vai te surpreender. Inspirada por divas pop, mais especificamente Doja Cat, a canção veio de um experimento de compor para outra artista. É uma parte sem pudor de Cara que queremos ver mais. A versão final passou por algumas mudanças antes de Alessia decidir lançá-la para si mesma.

À medida que nos aproximamos do fim, a narrativa se torna mais leve, divertida e descontraída, tornando-se cada vez mais autêntica. A decisão de gravá-lo majoritariamente com instrumentos ao vivo fez toda a diferença.
Se Alessia já escreveu três álbuns onde se preocupava melancolicamente com seu futuro, é um alívio ouvi-la agora ela repetir de formas diferentes que não quer pensar demais, apenas viver. A sonoridade acompanha esse fluxo “como Badu”, mencionada em Slow Motion.
Erykah Badu é do signo de peixes e Alessia decidiu referenciá-la a partir de sua própria referência. Em On & On, Badu menciona peixes nadando em direções opostas — assim como na constelação do signo — para simbolizar duas forças independentes e contrastantes que independente, se entrega intensamente ao amor, assim como L&H se entrega em sua reta final.
Two fish, one swimmin’ up stream / One swimmin’ down livin’ in a dream
Clearly é o melhor encerramento e encapsula toda a essência da obra. Soa grandiosa, solta e expansiva. O perdão dissolve qualquer peso do passado e traz uma visão de clareza com compreensão e colocando-a em um estado de paz.
É um disco que te convida a ouvir de novo e de novo sem parar. Um trabalho muito bem amarrado.
Em resumo, Love & Hyperbole é um trabalho que reflete o crescimento artístico de Alessia Cara, oferecendo uma experiência auditiva envolvente e emocionalmente rica.

